quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Toni Reis e 1ª Conferência Nacional GLBT

As conseqüências positivas são de uma dimensão nunca antes alcançada no Brasil

Por Marcos Brandão

A 1ª Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais reuniu, em Brasília, no Centro de Eventos Brasil 21, durante quatro dias do último mês de junho, cerca de mil pessoas - entre delegados, representantes da sociedade civil e do poder público dos 27 Estados e do Distrito Federal, autoridades governamentais, congressistas, observadores internacionais e jornalistas. Realizada com apoio governamental e precedida por encontros regionais que pré-discutiram políticas públicas para o setor, a conferência debateu e elaborou as ações a serem apresentadas e encampadas pelo governo, no Plano Nacional de Políticas Públicas para LGBT. Conversamos com Toni Reis, presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT), sobre as principais questões colocadas em foco durante o encontro, as propostas e estratégias resultantes e o que podemos esperar de mudanças na prática no avanço de nossas conquistas em busca da cidadania plena.

Qual a importância principal de a Conferência ter sido convocada por um governo federal e por um presidente da República?
A partir do momento em que o governo federal convocou a Conferência, foi aberto um debate para políticas de estado. Independentemente do próximo ou da próxima presidente, seja qual for o partido ou a pessoa, o governo deverá se basear nas deliberações da Conferência. Foi um marco histórico por ser a primeira do gênero em âmbito internacional. Ainda, esse gesto foi repetido pelas 27 Unidades de Federação e mais 105 cidades e/ou regionais. Participaram desse processo 16 mil pessoas, sendo 40% ligadas aos governos e 60% à sociedade civil. Os temas LGBT foram discutidos desde Lampreia, no Amazonas, até Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. As conseqüências positivas dessa mobilização para a cidadania LGBT são de uma dimensão nunca antes alcançada no Brasil.

Ao promover o evento, o governo brasileiro já pré-assumiu a criação de um Plano Nacional de Políticas LGBT?

Sim. A partir das deliberações da Conferência, será elaborado por parte do governo o Plano Nacional de Políticas Públicas para LGBT. Conseqüentemente, precisará de um órgão governamental para executar o Plano e um Conselho Nacional LGBT para fazer a fiscalização, o monitoramento e o controle social do mesmo.

Mas o próprio Lula disse, em seu discurso, que nem todas as resoluções podem vir a ser encampadas...
O presidente Lula foi extremamente simpático à causa do combate ao preconceito e à discriminação (veja box na pág. 52). Com isso, há uma certa sensibilidade para com o tema. Claro, das 600 propostas, muitas são exeqüíveis, enquanto a formulação de outras deverá ser aprimorada para que também possam ser encampadas. Pessoalmente, não vi nenhuma que seja impossível de ser executada. O que percebi é que algumas são de médio ou de longo prazo.

E quais foram as principais propostas resultantes da Conferência?
Primeiro, o principal resultado é que há propostas para 16 ministérios diferentes. Exemplos disso são: na Educação, sensibilização e capacitação dos profissionais de educação para o respeito à diversidade LGBT; na Saúde, a revisão da Portaria que proíbe a doação de sangue gay; na Segurança Pública, capacitação dos agentes de segurança para abordagem correta junto à comunidade LGBT; na Cultura, o apoio a eventos que promovam o respeito à diversidade LGBT. Além disso, as principais resoluções também prevêem o Plano Nacional de Políticas Públicas para LGBT, o Conselho Nacional LGBT e o Estatuto LGBT, todos de fundamental importância para o avanço da nossa cidadania. Outro resultado foi a aprovação da Carta de Brasília, que coloca de forma clara nossas prioridades, além de contemplar as questões internacionais.

Quais seriam as principais disposições de um Estatuto LGBT?
As prioridades no legislativo têm sido a criminalização da homofobia, a união civil e a mudança de nome para travestis e transexuais. Hoje, no Brasil, há 37 direitos negados à comunidade LGBT em comparação com a comunidade hétero; e, tramitando no Congresso Nacional, há 27 projetos de lei que beneficiariam nossa comunidade. A idéia do Estatuto é procurar juntar em um único documento propostas afirmativas para acabar com as lacunas atuais que impedem a cidadania plena de LGBT, a exemplo do Estatuto do Idoso e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Alguns líderes do movimento LGBT criticaram a Conferência, afirmando que as discussões foram, basicamente, uma ampliação e revisão das ações previstas pelo “Brasil sem Homofobia”, que nunca saíram do papel, e que governo que quer agir parte para a prática, não fica fazendo reunião... O programa “Brasil Sem Homofobia”, lançado em maio de 2004, foi um grande avanço para a comunidade. Entre outras ações, foram implantados 47 Centros de Referência LGBT em todas as capitais e em grandes cidades. Na Educação, foram financiados mais de 50 projetos de capacitação e pesquisa para o respeito à diversidade, o Ministério da Cultura abriu editais para o financiamento de eventos e Paradas LGBT em todo o Brasil. No Ministério da Justiça, através da Secretaria Nacional de Segurança Pública, está sendo disponibilizado um curso a distância para 60 mil agentes de segurança sobre como entender e abordar as questões LGBT... A própria Conferência é um desdobramento do Programa. Há muitas coisas a serem feitas ainda, e é nesse sentido que a Conferência vai poder colaborar com os ministérios e órgãos que não cumpriram a lição de casa do “Brasil Sem Homofobia”.

A mudança de sigla, já bastante difundida, era fundamental? Colocar o “L” na frente da sigla do movimento ajuda em que aspectos a promover a maior visibilidade lésbica no movimento?
Em 1980, no Brasil, usava-se apenas a palavra “homossexual” para englobar todas as especificidades. Com o passar dos anos, isso foi mudando. Em 1993, foi realizado o Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais. Em 1995, houve o Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas (EBGL), ao final do qual foi aprovado o acréscimo da palavra Travestis. No EBGLT de 2003 decidiu-se pelo “T” de Transgêneros (visando contemplar tanto travestis quanto transexuais). Já no EBGLT de 2005, o “T” passou a indicar Travestis e Transexuais, criando espaço para as especificidades de cada segmento. Nesse encontro, aprovou-se a sigla GLBT, significando gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. O que se percebe é que houve muitas mudanças, sempre no sentido de ser mais inclusivo. A mudança de sigla para LGBT coloca claro que temos que discutir o machismo e o patriarcado, pai e irmão da homofobia, da lesbofobia e da transfobia. Também seguimos o padrão internacional. Para alguns, pode ser até um assunto superficial e uma “perfumaria”, porém, a mudança de sigla foi uma grande discussão em prol da visibilização e do empoderamento das lésbicas.

Uma parte dos participantes questionou, nos bastidores, uma possível presença mais expressiva de militantes gays petistas na Conferência. Este é um desafio para o futuro: que a militância se foque na causa, suprapartidariamente, até onde isso seja possível?
Eu pessoalmente não sou afiliado a nenhum partido político. A organização no Brasil de todos os tipos é legítima. Vejo como interessante a organização de coletivos ou núcleos LGBT nos partidos políticos, como uma boa estratégia. Um dos fatores decisivos para a aprovação do matrimônio LGBT na Espanha foi a organização LGBT dentro dos partidos políticos. Apenas um partido votou contra. Hoje, no Brasil, o Legislativo é o poder mais atrasado nas questões LGBT. Basta ver o projeto de lei de união civil e o da criminalização da homofobia, que permanecem sem ser votados. Pessoalmente, na Conferência, conversei com pessoas do PCdoB, PSDB, PSB, PMDB, Democratas, PV, PPS, PTB e PT entre outros. E participei de diversas reuniões de segmentos diferentes: jovens, universitários(as), nordestinos(as), petistas, religiosos(as), psicólogos(as), travestis, lésbicas, entre outras. Então, é legítima a organização através das especificidades e temáticas afins.

Aliás, não é um tanto paradoxal que o governo convoque e apóie um evento do gênero e não tenha, até então, se mobilizado para apoiar, por exemplo, a lei que criminaliza a homofobia em tramitação no Senado?
Com relação à criminalização da homofobia, 8 ministros de Estado já assinaram formalmente seu apoio à lei. Os líderes do governo no Congresso também são favoráveis. Essa lei só não passa porque precisa de alguns ajustes, que serão feitos na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, e porque há pressão política muito grande por parte de determinados setores fundamentalistas. Durante o mês de maio, o Senado recebeu 36 mil ligações sobre o PLC 122/2006. 34 mil foram de fundamentalistas contrários e 2 mil de pessoas favoráveis. O que precisamos é a mobilização da nossa comunidade da mesma forma que está sendo feita pelos opositores.

Eu conheço o preconceito nas minhas entranhas”, diz Lula

No dia da abertura da 1ª Conferência Nacional GLBT, o Ministro da Saúde José Gomes Temporão anunciou que assinaria portaria permitindo a realização de cirurgias de transgenitalização (mudança de sexo) pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Mas o momento mais simbólico (e histórico) – e que emocionou a vasta maioria dos presentes - foi o discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que vestiu o boné e segurou a bandeira do arco-íris junto com a primeira-dama Marisa Letícia. Confira trechos do discurso, feito de improviso, durante pouco mais de 20 minutos:

“Quando se trata de preconceito, eu o conheço nas minhas entranhas. E eu sei o que é o preconceito. Talvez seja a doença mais perversa, impregnada na cabeça do ser humano.”

“E é uma doença que a gente não combate apenas com a lei. A lei ajuda, a Constituição ajuda, montar conselho ajuda, Toni, tudo ajuda. Mas é um processo cultural, é um processo que passa por uma revolução cultural, para as pessoas irem compreendendo que nós precisamos nos gostar do jeito que nós somos. E que nós não precisamos querer que ninguém seja igual.”

“Ninguém pergunta a opção (sic) sexual de vocês quando vão pagar Imposto de Renda, ninguém pergunta quando vai pagar qualquer tributo neste País. Por que discriminar na hora em que vocês, livremente, escolhem o que querem fazer com o seu corpo?”

“(...) só existe um jeito de, cada vez mais, a sociedade reconhecer o movimento: (...) é cada vez mais brigar contra o preconceito, é cada vez mais denunciar as arbitrariedades. Somente assim a gente vai conquistar a cidadania plena e poder, todo mundo, andar de cabeça erguida nas ruas.”

“É uma pena, meus queridos deputados – quero agradecer a presença de vocês –, que mais deputados e senadores não tenham vindo. É uma pena porque, ao ver vocês, eles iriam tomar um susto, e iam fazer uma exclamação: ‘São iguais a mim’. Quem sabe voltassem para suas atividades com menos ranço e com menos preconceito.”

Veja o discurso do presidente Lula na íntegra e saiba mais sobre a Conferência na Seção Orgulho Gay.

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